quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

MANHÃS DE INVERNO

Por Julio Zamparetti 

Estamos no mês de Fevereiro, pleno verão, mas a frente fria que chegou ontem à tarde provocando tempestade, raios, ventos, alagamentos e destelhamentos, também proporcionou, hoje, uma manhã relativamente fria que me lembrou as manhãs de inverno.

Eu adoro manhãs de inverno! Lembram-me os tempos de criança, das aulas matutinas no Colégio Santíssimo Sacramento, mais conhecido como “o colégio das Irmãs Baianas”. Até hoje é conhecido assim porque é dirigido por uma congregação de freiras da Bahia.

Minha nostalgia não se dá por conta de que a vida fosse boa naquele tempo. Na verdade guardo mais lembranças ruins do que boas daquela época. Afinal, enfrentei a separação de meus pais e todos os problemas acarretados em função disso, num tempo em que isso era absolutamente anormal. Dentre meus colegas de classe eu era o único nessa situação. Naquele tempo, quando um casal se separava era um escândalo na cidade! Nem professores, nem diretores, freiras ou padres sabiam, ao certo, como lidar com essa realidade que começava a despontar. Quem imaginaria que hoje essa condição seria tão normal?!

Minha nostalgia se dá porque a escola era meu o refúgio. Nela eu entrava no mundo das letras, dos versos, do conhecimento e contemplava um universo tão extenso, que eu já não podia limitar meu olhar às poucas desilusões de minha própria vida.

Assim as manhãs de inverno me fazem sentir aquela paz que eu sentia na infância. Os problemas de hoje são diferentes dos daqueles dias e as soluções, quando há, não poderiam ser as mesmas. Mas a paz é sempre paz. E como é bom senti-la assim depois de um dia de tempestade!

As manhãs de inverno são mais limpas, o ar é mais fresco, o azul do céu é mais intenso, a gente corre para um lugar ao sol e reclama do frio só para deixar bem registrado o frio que amamos.

Eu amo o Sul! Ah, que delícia são os campos das serras gaúcha e catarinense, suas paisagens, seus canyons, araucárias, maçãs, uvas, o bom vinho, o mate amargo, o pinhão assado na chapa do fogão à lenha onde a gente se agrupa em volta para se aquecer! Não há alma que não se sinta refugiada, aquecida e acolhida nas campinas do meu rincão.

O frio aquece o coração. Com o frio a gente quer estar próximo um do outro. Não é por acaso o sucesso das rodas de chimarrão. As pessoas ficam mais solidárias, os casais andam juntinhos, os abraços são mais calorosos e desejados e a vida ganha um calor especial.

As manhãs de inverno me fazem me sentir menino de novo. Tenho a sensação de ser, outra vez, um guri cheio de sonhos nutridos pela confiança de ter a vida toda pela frente. É um antídoto para minha adultite*. É uma graça divina que me faz ser criança novamente.

Preciso erguer as mãos aos céus e agradecer a Deus por, mais uma vez, ter me lembrado da necessidade que tenho de ser criança, pois isso me é vida.

Talvez as manhãs de inverno não lhe representem o mesmo que representam a mim. Mas você não pode deixar de descobrir a sua cura, o seu antídoto contra a frieza e o sectarismo que a vida adulta lhe causou. Descubra sua manhã de inverno... Descubra o que lhe faça ver, sonhar e acreditar como se fosse uma criança.

---------------------

* infecção do ser adulto.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

JESUS ERA PADEIRO

Por Julio Zamparetti

Desde criança ouço a respeito de fulano ou sicrano que “comeu o pão que o diabo amaçou”. Não sei quem criou esse dizer, mas agora sei que estava errado. O diabo nunca foi padeiro, nunca foi nada, nunca foi. Sendo ele o opositor de Deus, a quem as Escrituras denominam como “O Grande Eu Sou”, a única coisa que resta ao diabo ser é ‘o pequeno nada é’.

O padeiro foi Jesus, e que padeiro foi! Nunca outro fez, de cinco pães, pães suficientes para alimentar mais de vinte mil pessoas, em uma só tarde! Depois da ressurreição, ele apareceu aos discípulos assando um pão e convidando-os para jantar. E não se pode deixar de mencionar que o amor de Jesus pela arte culinária panificadora e sua identificação com ela eram tão intensos que disse: este pão é meu corpo. Isso é como o músico que diz que em suas veias corre música, ou o montanhista que diz que seu coração pulsa montanhas.

Carpinteiro foi seu pai, São José. Jesus exerceu esse ofício enquanto viveu a vida de seus pais. Quando saiu para viver sua própria vida e cumprir o propósito de sua existência, assumiu sua verdadeira profissão, padeiro. Não foi à toa que disse: “Quem vem a mim jamais terá fome”. Queria que seu trabalho, como seu amor, fosse degustado, metabolizado, e compusesse, biológica e espiritualmente, o ser que somos.

Eu imagino que, nesse ponto da leitura, muitos estejam resistentes em aceitar o que eu digo. Isso é compreensível. Preferimos um Jesus Rei, imaginamo-lo como um grande líder religioso, alguém com grande influência política. No Brasil, aprendemos desde pequeno que Deus é brasileiro e que padeiro sempre foi um português! 

É importante dizer que esse ensaio não visa diplomar Jesus nesse ou aquele ofício, e sim lançar luz sobre uma nova analogia do caráter cristão.

A perspectiva que criamos, recebemos e transmitimos de quem é Jesus nos impede de reconhecê-lo como ele é de fato. Como os discípulos no caminho de Emaús, também nós somos incapazes de reconhecê-lo, ainda que estejamos vendo, andando e conversando com ele. Aqueles discípulos esperavam alguém que libertasse o povo da opressão romana e restituísse o trono de Davi. Queriam um Rei, daqueles escolhidos dentre os grandes soldados guerreiros, não um padeiro. Nós também esperamos que Cristo seja um milagreiro, um gênio da lâmpada, um imperador que ponha tudo em ordem, não um trabalhador.

Mas também como os discípulos no caminho de Emaús, nossos olhos são abertos no partir do pão. Engana-se quem diz reconhece-lo nos templos, nos dogmas, na hierarquia eclesial, ou nas vestes litúrgicas. Ele é reconhecível na partilha do pão, da sopa, do teto, da terra, da renda e da própria alma. Por isso reconheço Cristo nas grandes mesas em que comunidades inteiras de chineses que jamais ouviram falar de Jesus partilham sua refeição, fazendo assim com que ninguém dos seus passe fome. Reconheço Cristo na forma comunitária e devotada com que tribos indígenas, sem a religião cristã, partilham e cuidam da terra e seus recursos. Reconheço Cristo na humanidade de quem, mesmo sem religião, acolhe os desabrigados e desprezados pela sociedade. Reconheço Cristo naqueles que, mesmo sem crer em Deus, partilham seus bens com os necessitados. Reconheço Jesus naqueles que, mesmo contrariando a religião, expõem sua alma, partilham seus sentimentos e lutam por aquilo que acreditam.

Como bom padeiro, Jesus gostava de convidar os amigos para uma boa degustação acompanhada de peixes, ervas amargas e vinhos. Nem todo pão agrada a toda gente; pouca gente se agrada do amargor das ervas; e não é qualquer um que aprende a apreciar um bom vinho. Acho que vem daí a atribuição do amassamento de certos pães à figura do diabo. Por isso insisto em dizer: o diabo não é padeiro, Jesus é. E tenho uma prova cabal disso. O salmista disse que “aos seus amados, Deus lhes abençoa enquanto dormem”, enquanto outro autor sagrado diz que “Deus não faz acepção de pessoas”. Viu? É o padeiro quem acorda muito cedo e trabalha duro, enquanto todos dormem, a fim de que de manhã cedinho, reis, soldados, plebeus, damas e vagabundos, indistintamente, tenham o que comer. Existe prova maior que essa?

Por fim, é bom saber que amargores, bolores, tristezas e choros também fazem parte da culinária de Cristo. Por isso, saber viver é como aprender a degustar um bom vinho Cabernet, um bom queijo Grana, uma boa radice com polenta. No início parece horrível, mas quando se aprende a degustar percebe-se que não há coisa melhor. O pão que Jesus amassou é assim: nem sempre é facilmente digerido; alguns nunca aprendem a degusta-lo; há até quem diga que foi o diabo quem o amassou; enfim, talvez seja para poucos, mas espero que você seja um destes. Porque a vida só é boa quando é plena, e só é plena quando se aprende a viver bem suas doçuras e amarguras.

Servido?